Diário de uma recém-morta

       Quando a gente morre, a gente não morre. A gente dorme e acorda aqui. Antes de dormir, a morte abre seu umbigo com uma chave, beija o buraco aberto de onde sai toda a sua alma. Depois, ela a deposita numa garrafa. Aqui, existe um produção de corpos. Aí, você fica na garrafa esperando seu corpo ser feito. E quando a alma encontra o corpo, tudo vira festa, há comemoração em todos os lugares.

       Aqui, as pessoas dançam em vez de andar. Você sabe que alguém está mal-humorado quando seus passos são pesados. Quando se está feliz, os passos são mais cheios de curva. E o beijo? É sagrado. É no beijo que você troca de alma com a pessoa que ama. Sua alma circula por dentro do corpo da outra pessoa e depois volta.

       Minha mãe me explicou que os 80 anos que passei viva, era apenas uma gestação. E quando eu era viva, 80 anos era muito. Hoje, passa rapidinho. Não sei como relacionar o tempo daqui com o tempo daí. O tempo aqui é muito estranho. Depende da maturidade de cada um. Por exemplo, eu posso ficar mais velha que minha mãe, em menos "tempo" que ela. Mas pra mim vão ter passado 200 anos e pra ela 100 anos. É isso: O tempo aqui é individual.

Acho que alguém nasceu aqui na vila. Vamos festejar. 

Bom Tempo.